domingo, 25 de novembro de 2012

A minha vó preta


 - Jeová, seu nome é... Já! – sempre dizia a minha avó. Na época que ela repetia fervorosamente (e alegremente) este trecho do Salmo 68, davídico, eu não sabia que Já (ou Jah, ou Jáh) era uma forma contraída Yahweh (o Jeová aportuguesado), que é o nome de Deus; SENHOR, o “Eu Sou”, Deus do povo judeu. Para mim, Já era já mesmo, com letra minúscula, de agora, de right now, de já! E foi nessa consciência infantil que por muitas vezes repetia, animadamente, o mantra de minha avó: Jeová... seu nome é já!

Hoje sei, um pouco pela saudade e um pouco pelo meu amaduecimento,  que a história de minha avó permitia os dois sentidos fonéticos de já. O primeiro, relacionado à religião, era evidente. Pentecostal rigorosa, tinha os joelhos calejados de ajoelhar-se para orar. Pilar de fé para todos os que conviviam com ela, saíra uma vez de Itatiauçu, onde morava, até Betim (numa época que não existia telefone), para amparar minha mãe que estava no Hospital por conta de uma mastite. Como ficou sabendo? O próprio Deus (o Jeová) disse a ela de manhã, quando orava: “Vá para a casa de sua filha... a casada... de Betim” – algo assim. Coisa de fé. Enganam-se aqueles que pensam que a vida de um religioso, um protestante, é sem propósito. Minha avó me provou de sua vida e do propósito dela, abalizado pela fé fervorosa, mas pela consciência clarividente de suas atitudes; senhora de si, que vivia sem nenhum (ou pouco) auxílio financeiro de seus filhos e que com apenas com a sua pensão mudava-se de casa a hora que lhe desse na telha.

Não a enxergo como fanática e tampouco  trago esta lembrança comigo. Mas, sim, das vezes que aparecia aqui em casa e dormia no meu quarto, e tocava violão e cantava músicas do seu hinário vermelho. Lembro-me da música sobre a história de Balaão e sua jumenta, em que havia uma parte onde que jumenta falava; nesta parte minha avó fazia questão de interpretar – e eu adorava! Também cantava músicas sobre mares e sobre o poder de Jesus em lidar bem com estes: ora andava sobre estes, ora acalmava-os. Um dia, para a minha surpresa, arriscou até uma de Roberto Carlos.

Eu sempre a acompanhava em suas peregrinações para ir à igreja, pois só admitia freqüentar a sua igreja, a Igreja Pentecostal Deus é Amor.  Uma vez, inclusive, estando de férias em sua casa em Igarapé, me fez andar um longo trajeto para ir ao culto. Como eu negaria? Estando com ela, eu era capaz, de fato, de caminhar uma légua a mais.

O outro sentido de já, o temporal, também perpassa as memórias que tenho de minha avó. Ela era a mulher do agora, do ímpeto, do já. Tanto é que chegou a abandonar a própria casa, onde morava sozinha com o filho adulto e problemático, para não ter que vê-lo enfurnado em seus maus caminhos. Minha avó era a mulher do agora, de opinião forte, não vacilava e não tutibeava. Talvez por ser mineira, ou talvez por ser crente, era a mulher do sim-sim  ou não-não: não havia outra opção. Era a mulher do já; não se importava em tomar remédios, mesmo consciente de seu coração frágil, pois acreditava no propósito divino. E ainda assim trazia um carinho misterioso, aconchegante; algo nos olhos  que brilhavam ou no cheiro agradável; algo que nunca pude bem definir: coisa de minha avó.  Sendo mulher do agora,  também nos deixou rápido, aos 63 anos, de surpresa. Era dezembro, mas não chovia. Quem me deu a notícia foi meu irmão:  “Wendell, a avó morreu!”.  “O quê?”, eu respondi, não com dramaticidade, mas com uma surpresa sincera.  Era difícil compreender que aquela mulher não era mais do agora. No velório – vejam só! – sorria... Premeditara, um dia antes, com tranqüilidade este fatídico acontecimento – isso fui saber depois -, quando comentou com a enfermeira: “Jesus está me chamando...”. Estaria ao lado de Jáh, afinal.

É claro que eu gostaria que ela estivesse conosco até hoje. Seria feliz ao ver seus bisnetos. Veria-me formar. Veria os meus irmãos se formarem. Veria a sua filha formar. De outras coisas, igualmente, penso que foi muito bem poupada. Aparecida Benta dos Reis. Digna deste nome! Na memória fica a minha lembrança doce e infantil de sua presença indescritível, de sua fé, de seu carinho e de plenitude. Na minha memória não será sempre eterna, mas sempre atual, a mulher do agora, que a qualquer momento aponta no meu portão, sobe a rampa e vem rindo para me abençoar. A minha avó... a minha vó preta!


Melhor que amá-la é poder ter lhe conhecido.



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A Língua do P

Quem me ensinou
a língua do P?
Pê-mi pê-nha pê-mãe!

Mas a língua do P
não  é simples fazer
e é difícil dizer:
Pêum pêdois pêtrês -
conta e começa aprender.

A língua do P
é código do adulto
(com outro adulto)
 para dizer, sem dizer,
o que não podem dizer:
com a criança na frente
o filho, o sobrinho, etecétera,
o assunto é segredo
para ninguém se intrometer!
- Pêcui pêda pêdo
  pêque pêe pê le
  pêper pêce pêbe

Fenômeno incompreendido no Campo da Comunicação,
não sei se a Língua do P
está catalogada
no livro de todas línguas,
mas é caso de análise para a
linguística, a semântica, a fonética
e a semiótica.





domingo, 18 de novembro de 2012

Procuro um escritor


Procura-se um escritor que passeou por estas bandas – dizem. Algum do tipo comum; sendo meio alto e meio baixo, com poucas preocupações e, embora com a aparência sisuda, despertava curiosidade de quem o via e, sobretudo, àqueles que conversavam com ele. Este escritor, pelo que pude observar através (não utilizava esta palavra “através”) do meu pouco contato, trazia observações modernas, pensamentos modernos, sobre a vida humana. Divagava em alguns textos muitíssimo curiosos sobre as diversas formas que as relações humanas haviam adquirido, colocando-as em algumas equações novas, modernas – daí a origem do “observações modernas, pensamentos modernos”.

É verdade que  todos os escritores de nossa época traçam este mesmo caminho e escrevem, em umas ou outras linhas, sobre o pensamento errado que os indivíduos ora constroem, oram destroem. A isto dou o nome de vício. A propósito, este escritor a quem procuro certamente compartilharia esta ideia do vício, pois em seus textos via-se fortemente uma metacrítica àqueles escritores que falavam, morosamente, sobre o pensamento humano de forma negativa, sem nenhuma proposição de mudança. Ora, é verdade que não cabe ao escritor apontar soluções para os males que descreve. E é por isso que o escritor, em nossos tempos, ao contrário dos médicos, advogados, engenheiros, etc., perdeu o seu valor e procura (parece fazê-lo) advertir às pessoas de um mal maior, terrível, mas desconhecido. Os males que as pessoas conhecem, é claro, são as doenças, as guerras, a violência – e estes tantos outros que todos sabem. Para cada um existe um profissional específico para propor as soluções devidas. E o escritor, coitado, insiste em anunciar o seu mal desconhecido e, vejam só, sem solução.

No entanto, procuro um escritor que soube ludibriar a todos – até mesmos os próprios escritores – e falou de coisas pesadas e verossímeis, que diziam respeito à ordem e à orgia humana; não tratava de um mal estar desconhecido, inverídico, tosco, mas, pelo contrário, tocou a real ferida de todos nós e nos fez gemer de dor. E todos nós estávamos certos de que o que havia sido tratado ali, por aquele escritor, era a  inquestionável vida de todos nós. Foram tempos difíceis, mas de profunda reflexão. Tempos produtivos, todavia marcados por desconstruções de sólidas estruturas que mantínhamos por inúmeras gerações.  Havia novas músicas e todos os meus contemporâneos demonstravam novos semblantes, como se tudo, estranho, fosse começar outra vez, mas de uma maneira muito bruta. Sempre nos lembraremos deste período – pelo menos posso falar de mim.

Eis que um dia este escritor sumiu. Procuro-o. Este que nos fez refletir sobre a função das palavras e nos abriu os olhos novamente. Procuro este escritor que alcançou a síntese de todas as considerações que eu um dia tentei fazer. Afinal, também quero ser escritor. Como ele. Procuro-o, pois quero aprender este dom, esta magia, este ofício de tradução do sentimento humano – cá estou eu, é certo, cometendo o mesmo erro que identifiquei nos escritores. Deslumbro-me. Quero encontrar este escritor para que ele me ensine! E que com ele eu aprenda!  Ao uníssono silencioso da alma, ao azul, ao avante, ao declínio, ao escuro – quero que me ensine.

E eu sei que há algo de belo e atual nestas minhas palavras (eu sei, eu sei), é certo, mas, sim, procuro um escritor que me corrija, que me freie e que me mostre o caminho certo das palavras. Quero compreender o mundo, como  já fizeram um dia.

Wendell 

Acessos